Belém, 10 de julho de 2025.
Oi, pai
Essa não é a primeira carta que eu te escrevo, provavelmente não vai ser a última. Tu deve lembrar, eu tinha 10 anos quando te escrevi a primeira, te pedindo desculpas por brigar contigo, mas ainda puxando a tua orelha por não se cuidar como eu achava que tu deveria se cuidar. Eu ainda guardo essa carta e te confesso que quando releio fico um pouco assustada com o grau de consciência que eu já tinha da tua individualidade desde tão nova. Às vezes acho que deixei de ser criança no dia que escrevi essa carta. Às vezes acho que aprendi a falar do meu medo de te perder escrevendo essa carta. Um medo que me fez companhia e me fez continuar puxando a tua orelha por mais 17 anos até o dia em que tu se foi. Domingo faz 10 anos desse dia.
Eu tenho sonhado muito contigo esses últimos tempos, vai ver é todo o futuro e as decisões pra ele acontecer na minha cabeça. Agora tu deve tá pensando que se estivesse aqui e eu estivesse te pedindo conselhos, provavelmente faria o contrário de tudo que tu diz ou fazendo sob protesto, mas em sonho eu sigo todos eles. Pode rir. Às vezes, muito bobamente, eu fico pensando se eu te daria orgulho, se estou sendo a filha que tu gostaria que eu fosse, mas lembro que não foi essa educação que eu recebi, não senhor. Nem sequer o exemplo, já que tu não abriu mão do teu jeito nem pra morrer.
É surreal pensar que já se passou tudo isso de dia desde que a gente te viu pela última vez. Lembro que fazia muito sol lá fora quando nos despedimos de ti e eu pensava que simplesmente não fazia sentido. Como o dia poderia ser absolutamente normal, o trânsito fluir, as pessoas irem à feira? O meu pai morreu. Peraí um instante.
Mas os velórios e sepultamentos não são pra isso, eles não estão ali pelo luto ou pra gente processar nada. Eles são só um acordo coletivo de que aquela pessoa não existe mais. Todos concordamos sobre a sua ausência e continuamos porque, literalmente, não tem outro jeito. Assim como aquela ligação diabólica que a gente recebe do hospital, ou aquelas sete fases entre negação, aceitação e sei lá mais o quê. Não. Nada disso tem a ver com luto.
Um tempo desses tocou O Caderno no Uber e eu comecei a chorar. Toda vez eu tento lembrar porque eu estava emburrada e não consigo. O luto é isso.
Um sábado de manhã vendo como ficou o reboco novo da casa que a gente acabou de reformar. Aquele almoço barulhento na casa da Nana, a Paty falando alto igual tu. A formatura da Juju. Mamãe chorando enquanto o Oswaldo Montenegro cantava Bandolins no Teatro da Paz, o dia do acesso do Remo à Série B, na despedida da vó Nazaré. Nas apresentações de dança da Maria, num dia qualquer do Cesinha parado no meio da sala com a mão na cintura sendo tua cópia mesmo sendo o filho que menos conviveu contigo.
Tem horas que é duro mesmo, Júlio César. Porque essa coisa de ser presente cobra um preço alto na ausência, especialmente quando se vai tão jovem, faltando tanta coisa pra ver. Às vezes eu penso que loucura, tu nem sabe que o Lula é presidente de novo. Mas quantas coisas tu viu, né pai? Naquele meu aniversário em 2003, quando eu te vi chorar na frente da tv, foi a primeira vez que eu te entendi como um homem de esperança.
E essa é outra coisa do luto. Depois de um tempo, a gente finalmente começa a entender que não vai dar pra preencher o vazio e a ausência e algumas coisas começam a ganhar contorno de esperança e de sonho, por assim dizer. Tu disse mesmo que ficaria tudo bem.
Teu lugar jamais seria esquecido num canto qualquer. Teu lugar é a nossa história, nos nossos traços, nos nossos erros e acertos. Em todo o nosso coração.
Te amo pra sempre, veio.
Vanessa.

Playlist das favoritas do seu Julio Cesar
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Quem não conhece o dia a dia do luto, nem imagina como ele mora nos detalhes mais bobos da nossa rotina. Não existe uma grande ficha caindo, a gente vive tropeçando nessa ausência e as vezes cai mais feio do que poderia prever.
Nessa, que carta linda! O luto é assim, ele aparece em qualquer dia, quando menos esperamos, mas seguimos porque, como disseste, não temos outra opção.
Provavelmente já te disseram isso, mas és A CARA do teu pai.
❤️