eu só podia estar louca? #09 quando viajei o ano inteiro
Hedonista, niilista, estoica? Não. Na minha Era Bourdanista.
Previously on eu só podia estar louca?:
#08 eu só podia estar louca? quando ouvi caju
#08 Anteriormente
#07 Anteriormente
Olá leitor. Eu sei, esse não é o dia que meus e-mails costumam chegar na sua caixa de entrada. Mas resolvi entregar a última edição do ano no último dia do ano porque, diferente da maioria dos millennials que hoje são praticamente apenas uma energia abstrata de tanto que desconstruíram conceitos, eu adoro um ritual de passagem. Nada muda às zero horas do dia 01 de janeiro, mas tudo muda também. E eu não quero mais aquela sensação que esse limbo que nós caímos desde 2020 se perpetue e a gente siga sem saber quando, como e onde as coisas aconteceram.
Pra 2025, mais presença, memória e tempo.
Até qualquer dia de janeiro. ;)
Aqui vai uma informação sobre mim: eu amo o Anthony Bourdain. Já tem algum tempo que eu sei que escreveria sobre ele e, dada a quantidade de tempo que passei viajando esse ano, aconteceria hora ou outra. Eu decidi que seria agora, mas traçar esse paralelo viajante entre nós não era o suficiente, chover no molhado nunca me interessou muito.
Ele é um dos meus cancerianos favoritos. No dia que eu descobri que ele também era um signo de água, toda conexão que eu sinto com aquela mente perturbada simplesmente fez sentido. Porque ele era um homem rico que pôde abrir mão de uma carreira consolidada pra seguir a verdadeira vocação de escritor? Não. Porque ele era um suicida, assim como eu.
Desculpa se eu te peguei de surpresa agora. Não precisa se assustar, eu tô muito bem. Eu sei que é um pouco mórbido falar de morte na última edição do ano, no último dia do ano, mas falar de morte é, também, uma outra forma de falar sobre vida. E eu só entendi sobre o que seria essa edição quando assisti Roadrunner, o documentário que tenta, na minha opinião com muito sucesso, contar a trajetória visceral do Anthony Bourdain com absolutamente tudo que ele se propôs a fazer. Seja como o grande chef, ou como aquele que abandona a alta gastronomia, como escritor, apresentador de TV, figura política e social, pai, marido, divorciado, apaixonado por uma cineasta do Me Too, adicto, é difícil não ter a sensação de que Anthony foi fundo em tudo.
O doc, feito a partir das cenas de bastidores do icônico Parts Unknow e do depoimento da equipe de produção do programa e do seu pequeno círculo íntimo, tem uma montagem que mostra muito bem como era conviver com a dualidade daquela personalidade tão punk rock quanto melancólica, que vivia em constante movimento, em viagens cada vez mais exóticas e perigosas, conforme o Anthony vai se transformando na figura jornalística de denúncia de guerras militares e civis pelo mundo pela qual ficou mundialmente conhecido.
Eu adoro o título desse documentário, ele é uma pegadinha. Ela faz menção a música, de mesmo nome, da banda The Modern Lovers, que faz uma associação a essa pressa que ele tinha de explorar. Mas run e runner, em inglês, também podem falar do ato de fugir. O que, na minha teoria da conspiração (assim como a de que o Carmy Berzatto foi inspirado nele), faz muito mais sentido. Em determinado momento, quando eles mostram o quanto a disposição dele para experiências extremas começa a escalonar, eu comecei a rir com a sensação de quem tinha entendido um segredo. Aquelas experiências literalmente viscerais eram o que ele precisava pra que a vontade de viver pudesse finalmente ser tão forte quanto aquele desejo de morrer, do qual ele fugia com tanta pressa. Toda pessoa em situação de setembro amarelo vive em fuga, pode perguntar. Para o Anthony, eram cidades arrasadas por guerra e corações de serpente ainda batendo descendo pela garganta, pra mim era uma profunda disposição em ser útil.
Talvez, vocês que cresceram com uma boa noção de autoestima, não entendam muito bem, mas toda pessoa gorda é ou já foi viciada em agradar, que eu chamo, não ironicamente, de síndrome da boazinha. Inconscientemente, eu acreditava que quanto mais útil fosse e quanto mais esforço eu fizesse, mais amada e aceita eu seria. Esse sentimento é capaz de invadir cada área da vida como um veneno neoliberal, que te convence, dia após dia, que demonstrar valor através do esforço vai dar certo. Mas quase quatro anos depois da minha última crise, quando reli A Vida Não é Útil, aquele troço bateu que nem um martelo.
“O meu povo, assim como outros parentes, tem essa tradição de suspender o céu. Quando ele fica muito perto da terra, há um tipo de humanidade que, por suas experiências culturais, sente essa pressão [...]. Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que os nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver. Em todo resto do tempo você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do sonho.”
Ali pelo dia 35 da minha viagem pelo nordeste, eu pedi um pit stop pra terapeuta. Nessa sessão comentei que fazia muito tempo que eu não pensava tanto sobre morte quanto naqueles dias de viagem. Suspender o céu tinha se tornado emocionalmente confuso e eu estava me sentindo descolada do meu estado “normal”, ou do que eu acreditava ser a minha própria personalidade. Depois de tanto tempo sem conseguir me ver dissociada da minha condição patológica de depressiva, era constantemente assaltada por pensamentos que vocês podem considerar mórbidos, mas sempre faziam o meu amigo Yuri rir, porque ele sabe. Essa é outra coisa sobre suspender o céu: não dá pra fazer sozinha.
Ao final da sessão nós duas concordamos que é muito neoliberal que patologias sejam consideradas personalidades dos indivíduos. Mas eu entendi outra coisa mais surpreendente. Todos esses anos de uma jornada socialmente imposta de autoconhecimento tinha chegado longe demais e a lugar nenhum ao mesmo tempo. De repente, eu estava confrontada com o cotidiano como extensão do sonho dos Krenak e fui tomada por um sufocamento, com essa sensação de que dentro de mim tudo que existia era apenas amontoado de barreiras de proteção, de alertas de gatilho e reações aos meus traumas, dores e precariedade. Quem dá conta de ter vontade de viver assim?
Numa entrevista de 98, quando perguntaram pra Lauryn Hill, afinal o que era “miseducation”, ela explicou que é uma metáfora para ser reeducada. Um chamado para desaprender toda bobagem genérica que existe no mundo e impede transformações.
Talvez, a diferença entre o Anthony Bourdain e eu (além da posição de poder no patriarcado e os milhões de dólares na conta), é que enquanto ele viajava pra fugir do próprio platô de autoconsciência, todos os meus milhares de quilômetros entre aviões, estradas, barcos e até quadriciclos, foram o caminho que eu inventei pra me desconhecer e desaprender toda as bobagens genéricas, o medo, o excesso e o espelho do outro.
Na minha última conversa com a terapeuta no ano passado, quando contei que faria essa viagem, disse pra ela que tinha uma planilha. Eu ficava apavorada com a ideia de ser uma mulher sozinha, numa rodoviária, com uma mala e uma mochila na mão, numa cidade estranha, com gente desconhecida. Cada movimento interestadual, cada casa de quem ia me receber, hostel e ideias de passeios até a minha volta estavam absolutamente planejados, não tinha como algo dar errado.
Sabe o que aconteceu com o meu planejamento? Não sobreviveu nem à primeira semana. Eu fui obrigada a adaptar planos, adoeci mais de uma vez, fiquei sozinha numa UPA passando mal, fui rejeitada, gastei dinheiro a mais. Mas também vi o pôr-do-Sol mais lindo da minha vida, assisti meu cantor favorito com uma orquestra sinfônica, fui acolhida por estranhos, caminhei olhando a lua refletir no mar, tomei café da manhã de frente pra praia. Agora, a cada perrengue de viagem, cada não e abandono, cada mudança de planos e de curso, eu não fujo mais.
“Viajar nem sempre é bonito. Você sai, é marcado e transformado com o processo. Até o coração.”
Não tem vontade de fugir que resista à profunda consciência de que eu posso ir e voltar onde suspendo o céu com vocês. Essa edição é um feliz ano novo especial para os meus. Em especial ao meu blackbird favorito, Yuri, por sempre rir comigo, por sempre voltar e por seu cheirinho de cigarro.
Com quantas refs se faz uma edição?
1. Roadrunner: um filme sobre Anthony Bourdain foi um dos R$6,90 mais bem gastos da minha vida, alugado no Primevideo. Mas é claro que você também pode ser criativo e lembrar como nossos antepassados assistiam coisas que não estavam disponíveis oficialmente; Anthony Bourdain's favorites songs é a playlist que um anjo do Senhor criou com várias canções citadas pelo Tony em seus livros, entrevistas e programas de TV; Meu Parts Unknow favorito é o episódio caipirinha-man, na Bahia.
2. Trilogia Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, da entidade e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak; Conversa mágica entre ele e Satish Kumar, no Jardim Botânico.
3. Uma das raras entrevistas da Lauryn Hill, pra BET RAP City, em 1998, sobre o icônico e inigualável álbum The Miseducation of Lauryn Hill.
Obrigada por ter lido até aqui!
Se for sua primeira vez, muito prazer, eu sou Vanessa Vieira e essa é a minha newsletter: eu só podia estar louca? Aqui eu conto causos da minha vida em crônicas ou ensaios, faço muitas analogias e indico coisas que estou lendo, assistindo e ouvindo. Se não tiver nada novo aqui, vai lá no meu Instagram ou no meu Tik Tok. Se não tiver nada novo lá, no meu Blue Sky (que descanse em paz, meu bom e velho Twitter) com certeza tem.
Se tiver interesse em apoiar essa newsletter, você pode assinar o meu Apoia.se, a partir de R$16. Se não puder contribuir financeiramente, você ajuda muito compartilhando e comentando. Conto com você!