eu só podia estar louca? #08 quando ouvi Caju
Como com um álbum e uma série Netflix, Liniker e Adam Brody decretaram a volta do romance. Ainda bem.
Olá, leitor. Não era a intenção quando comecei a escrever essa edição na minha cabeça muitas semanas atrás, mas com a partida do último romântico, não tinha como ser diferente. Essa edição é a minha homenagem à Antonio Cicero, que faleceu por eutanásia uma semana atrás. Com ele, todo brasileiro aprendeu a amar e a sofrer um pouco também. É também o meu agradecimento. Mesmo em sua carta de despedida, visceral e mórbida, Antonio Cicero não desistiu da poesia e me lembrou, mais uma vez, porque eu escrevo. Para guardar. Que descanse infinito, romântico e fullgás.
Essa edição tem uma playlist especial. Recomendo ouvir enquanto lê. Ou não.
Até a próxima ;)
Seria só mais uma segunda-feira comum, mas desde o dia 19 de agosto de 2024, nem vocês nem eu conseguimos pensar em outra coisa além de quem correria atrás da gente num aeroporto. Depois de mais de uma década sendo atormentados por frases feitas e abestalhadas sobre autoamor no Instagram, Liniker reaparece com um álbum novo e torna aquela segunda-feira o dia oficial da volta do romance. Respiro aliviada.
Passei por esses anos de conteúdos e obras com um incômodo esquisito na boca do estômago. Não significa que eu sou contra o autoamor, muito pelo contrário. Eu mesma tive minha cota de muitos anos de terapia e análise pra encontrar algum amor por mim mesma dentro de mim. Mas sabe quando Jesus disse que é pra gente amar o outro como a nós mesmos? Aí é que tá.
Seria só mais uma quinta-feira comum, mas desde o dia 26 de setembro de 2024, nem vocês nem eu conseguimos pensar em outra coisa além de quem é capaz de lidar com o desafio diário que é estar com a gente. Depois de décadas trocando a ideia de realização pessoal através do amor romântico pela ideia de realização pessoal através do trabalho, Adam Brody e Kristen Bell (um grande abraço aos fãs de The O.C e Verônica Mars, eu sinto vocês) reaparecem nas nossas telas, em uma cena icônica da série Nobody Wants This, para curar todo millennial burnoutado. Era pra ser só uma comédia romântica dos novos tempos, mas não consegui segurar o choro. Mais uma vez respiro aliviada.
Mas não muito. Nos últimos meses eu andei apavorada com o conceito de amizades de baixa manutenção. Se proliferou pelas redes sociais vídeos de pessoas orgulhosas de quão fácil é se relacionar com elas, desde que não haja nenhum tipo de cobrança de presença. Eu entendo, tá todo mundo cansado. O território das relações anda em suspenso desde a pandemia e seguimos contabilizando os efeitos que ela deixou na nossa capacidade de estar com os outros. Mas essa suspensão, por mais que tenha sido potencializada pela pandemia, tem outra raiz.

O Byung-Chul Han, filósofo coreano que aparentemente tem as respostas pra todos os nossos dilemas contemporâneos, fala o seguinte no penúltimo capítulo de A Expulsão do Outro, meu favorito dele: “Nas relações de produção neoliberais, esse fardo ontológico (nesse caso, o cansaço) cresce até se tornar imensurável. A maximização do fardo tem, em última instância, a finalidade de maximizar a produção”.
Explico: O capitalismo ama quando nós estamos cansados e sozinhos. Apáticos, não nos sobra mais nada além de produzir. Totalmente domesticados.
Mas quem também falou sobre isso foi a bell hooks. Em um dos capítulos sobre autoamor de “Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas”, ela diz a seguinte frase icônica: “O amor próprio não pode florescer em isolamento.”.
Explico: Essa historinha que você criou aí na sua cabeça com todo esse conteúdo que você consome falando que nós somos tudo que nós precisamos, que se amar é a única saída pra ser feliz ou que você não precisa de ninguém pra ser feliz ou que você só banca uma relação sem cobranças porque do contrário é invadir a sua individualidade e liberdade, provavelmente nem é amor próprio.
Isso é tão simbólico dos nossos tempos, que não sobrou uma pauta coletiva sem cooptação pelo neoliberalismo. Feminismo, antirracismo, não monogamia, diversidade de corpos. A gente não consegue mais pensar em autoamor sem que ele seja um imperativo ou, pior, um fim em si. E agora mesmo você tá pensando que não quer ou que não cabe a você fazer alguma revolução, e tudo bem. Mas a notícia é que o resultado disso é também não encontrar amor. Porque amor não é algo que se pratica sozinho.
Ainda no mesmo capítulo de A Expulsão do Outro, Chul Han cita um trecho de “Humano, demasiado humano”, onde Nietzsche diz: “Para que o amor supere as oposições por meio da alegria, ele não pode suprimi-las, negá-las. - Mesmo o amor próprio contém uma inconfundível duplicidade (ou multiplicidade) em uma pessoa como pressuposto”. E depois volta: “Em vista do ego doentiamente aumentado que é cultivado pelas relações de produção neoliberais e explorado para o aumento da produtividade, faz-se necessário tomar a vida novamente da perspectiva do outro, da relação ao outro, e conceder ao outro uma prioridade ética, escutar e responder ao outro.”
Nesse mundo onde o inferno são os outros, como diz Sartre, onde as famílias são tóxicas, as relações são abusivas e muitas vezes o trabalho é a única coisa que garante o nosso senso de independência, é muito sedutor engajar em uma narrativa que nos diz que nós só dependemos de nós mesmos pra preencher esse vazio afetivo e existencial que o mundo nos deixa. E sei, também, que algum espaço de solidão pra desenvolver a nossa subjetividade é necessário.
Penso em quanto pragmatismo nós temos empregado nas nossas relações mais íntimas, em como a nossa capacidade de definir sozinhos quando tirar o crachá é tirada de nós um pouco dia após dia.
Você já decorou quantas tatuagens tenho?
Se eu ligo pra cartoon ou rabisco os meus desenhos?
Quantos shows tem na minha agenda, meu disco favorito
O peso do meu coração?
Eu considero estar presente o artigo mais valioso dos nossos tempos. E o mais romântico também. É por isso que sempre que ouço Caju e aquela lista de perguntas que a Liniker começa a música, a minha sensação é quase de um check. Você tá aqui? Você tá prestando atenção em mim? Você vai ficar aqui nos dias que eu sou carente e nos dias que sou completa? Volto ao episódio 6. “I can handle you” é a resposta de Caju. Uma declaração de presença.
Mas, dado que a vida adulta realmente vai ser feita de alguns momentos de solitude e que parar de produzir ainda não é uma opção, que tal se o amor próprio não for mais um fim, mas um ponto de partida? Que tal retomar a vida como o lugar onde nós não vivemos sozinhos, mas onde a gente inventa junto ao outro uma existência realmente baseada na liberdade e no amor, não no cansaço?
E nem precisa correr atrás de mim em um aeroporto. Nem desistir do seu grande sonho de ser rabino.
Ou talvez sim. Não sei. Assim como Antonio Cícero, talvez eu seja a última romântica buscando o pseudofruto. A pele do Caju.
Com quantas refs se faz uma edição?
Eu nunca escrevi uma edição tão grande até agora. Consequentemente nunca bebi de tantas fontes pra escrever uma edição. Provavelmente tem mais coisas, mas foram tantas referências que seria quase impossível lembrar.
CAJU. É muito lindo ver uma artista independente com a coragem de ser grande, como Liniker. Charts bombando, shows sold out. Vida longa a Era Caju.
Tenho certeza que Nobody Wants This, da Netflix, foi feita sob encomenda para acalmar o coração millennial. Tem podcast, Adam Brody e Kristen Bell nos papéis de Noah e Joanne, um casal improvável de pessoas incompatíveis que querem que um relacionamento dê certo.
Este vídeo da Sally Rooney hablando sobre a falácia da autossuficiência em 2018!
Livros citados:
- Tudo sobre o amor: novas perspectivas, de bell hooks (Editora Elefante)
- A Expulsão do Outro, de Byung-Chul Han (Editora Vozes)
- Humano, demasiado humano, de Friedrich Nietzsche (Editora Lafonte)
- Bíblia Sagrada, versão Almeida Revista e Atualizada
Obrigada por ter lido até aqui!
Se for sua primeira vez, muito prazer, eu sou Vanessa Vieira e essa é a minha newsletter: eu só podia estar louca? Aqui eu conto causos da minha vida em crônicas ou ensaios, faço muitas analogias e indico coisas que estou lendo, assistindo e ouvindo. Se não tiver nada novo aqui, vai lá no meu Instagram ou no meu Tik Tok. Se não tiver nada novo lá, no meu Blue Sky (que descanse em paz, meu bom e velho Twitter) com certeza tem.
Se tiver interesse em apoiar essa newsletter e o novíssimo Frete Grátis que vem aí, você pode assinar o meu Apoia.se, a partir de R$16. Se não puder contribuir financeiramente, você ajuda muito compartilhando e comentando. Conto com você!